A ALMA DAS PEDRAS
A ALMA DAS PEDRAS
mitos, lendas e representações que as
fragas sugerem
Veio a lume, no dia
29 de Outubro de 2020, a obra A ALMA DAS
PEDRAS – mitos, lendas e representações que as fragas sugerem, da autoria
de Altino Rio e Herculano Pombo.
O primeiro capítulo, Pedras banais e fragas míticas, consta
de 20 crónicas que nos ajudam a compreender a toponímia e a História de Santa
Leocádia, Arcossó, Paradela, Curral de Vacas, Cambedo, Vilarelho, Sanjurge, Calvão,
Soutelinho, Bustelo, Vale de Anta, Faiões, Outeiro Seco, Monforte, Castelões,
Castelo do Mau Vizinho, Bolideira, Mairos, S. Lourenço, Castelo e Eiras. Por alguns
desses locais passaram romanos e franceses (invasão de Soult); pedras que
nos revelam esconderijos e atalaias; a raia do desassossego que nos faz
recordar memórias sofridas, guerrilheiros e sonhos da liberdade; a mineração do
volfrâmio; o Auto da Paixão.
Podemos ver pedras
que sugerem bichos de sangue frio, patas de pita, bicadas de galo, cães endoidecidos,
uma cova onde a burrinha se espolinhou, marcas de ferraduras, escorregas, sinos, tábuas aparelhadas,
serrotes de serranchim gigante, um ovo sineiro, abrigos onde se cozinharam petiscos,
esconderijos, o fragão da raposa, as pias de Lagarelhos, a pedra da serpente, fojos
de lobos, abrigos de anhos e cabritos.Pedras, fragas e fragaredos
que representam rebolos de granito, mole de granito esfíngica, um rebo de ar
tisnado, a ciclópica nariganga, a pedra celta (touro divinizado), o picoto da Lamarelha,
a pedra embanadiça, os abrigos da Fraga da Pala, a Fraga do Engano que
ludibriava os mais incautos.A obra conduz-nos
ainda para mouras encantadas, duendes, bruxas, trasgos e dianhos, a sala do
diabo, o som cavo do Sino das Bruxas, ribeiras com os seus moinhos onde moleiros
e lavadeiras ganhavam o seu pão, passadiços de madeira, o conjunto lítico
semelhante a uma anta em Lagarelhos, uma rocha com duas covas, pedras a servir
de contraforte a casebres. Pedras que representam
símbolos religiosos: a memória do Auto da Paixão de um cruzeiro, a cruz na
rocha, a fraga do sino das pedras, símbolos cruciformes, o Monte da Cruz de
Malta, a cova funda da Pia do Batizado, a cruz em cima de um fragaredo, a avó
do Cristo de Santa Ana, o abrigo da devesa do Padre João. A lenda do Outeiro do
Salto, a Fraga escorrega, a água da pia da Fraga do Engaranho que sara
maleitas, o fragão do tamboril, a avantesma granítica da Fraga do Martinho, o Largo
da Eira do Forno que ostenta duas estelas funerárias, as trutas do rio Mouce, o
amuralhado castrejo do Outeiro dos Mouros, a Fraga da Cavaleira com os seus 30
metros de altura, lugares rupestres, lajes aprainadas e as cascatas de águas
saltaricas da Ribeira de Loivos são mais um conjunto de lugares, figuras e
imagens com que os autores nos quiseram obsequiar.
Segue-se o capítulo ludus
naturae ou entretenimento da Natureza, como refere o Dr. Manuel Carvalho
Martins no prefácio do livro. Consta de um conjunto de fotografias, da autoria
de Altino Rio, acompanhadas de legendas descritivas que lhes conferem ainda
mais encanto.
Perpassam por estas
páginas pedras, fragas e fragaredos relacionadas com seres humanos: o senhor
marquês, os encapuzados, os pais e o menino em fuga para o Egipto, a corda ao
pescoço de um condenado, o rosto carcomido, a caveira, a dentada no hambúrguer,
o rosto resignado da morte, o penedo de barriga empinada com as mãos nos
bolsos, as nádegas em alívio despudorado, os negros e túmidos testículos, a
pedra de olhos e boca rasgados num sorriso, a cabeça perdida, o penedo fálico.
Pedras e fragas que
nos fazem lembrar animais de todo o tipo: o hominídeo e o seu assarapantado
assombro, a baleia que deu à costa, as beiças de um bicho, a foca obesa, o cão
sentado, o sorriso afável do bicharoco, o cão da Srª da Aparecida, o leão de
juba farta e farfalhuda, os uivos de bichos pétreos, os elefantes, a lebre, o
prescutar de um bicharoco, o uivo lamentoso do lobo, o bicharoco sobre uma
cabeça risonha, o carneiro de recurvos cornos, as crias de um bicho estranho
que espera cibos que lhes acalme a fome, o pulo alegre do cachorrito, o cão
laboreiro, o bicho de olhar fixo e de beiça descaída, o olharapo curioso,
fragas de afectos e paixões.
Pedras e fragas que
representam répteis e outros bichos: os sardões no calor soalheiro das fragas,
cadáver de peixe, o camaleão, os ofídeos em êxtase de um namoro apaixonado, a
cópula lenta dos cágados, a tartaruga, o jacaré, o sardão, o moribundo dinossáurio,
o cágado que saboreia o sol, o sapo alapado no quente soalheiro.
Outras sugerem-nos aves:
o rechonchudo paquiderme, a ave a debicar grãos, o poiso e o território da
gralha em cima do despudorado e gordo nalgueiro, a pássara no choco dos ovos, o
piar lamentoso e agoirento de um corujão de pedra, o pato, o sapo, o passarão,
a pássara de trinca-pinhões, a galinha no choco, pássaros que trocam chilreios
de melodias mudas, a ave agachada sobre as fragas, o antártico pinguim,
pássaros de pedra.
Há ainda fragas
moldadas pelo tempo: as pedras gémeas, as pedras afectuosas e namoradeiras, o
uivo da esfinge, as bôlas de pão, o pequeno às cavalitas do pai, o disco voador,
a boina na agigantada cabeçorra, o humor azedio de uma fraga, as imóveis
narigangas, o hambúrguer com batatas fritas, a obra inacabada, o contrabandista
com o trelo às costas e boina galega, a panela e o testo, o penedo indiferente
à modernidade, os penedos a segredar, o penedo enroscado e sereno, a pedra de
duas caras, penedias fálicas, a
fraga decepada, a pedra avelhentada, pedras encapuzadas, a concha de um
caracol.
O terceiro capítulo, Cada pedra seu destino … as pedras também falam. Mais um
conjunto de belas fotografias e excelentes legendas descritivas inseridas numa
construção cultural e social que enriquecem a História
do concelho de Chaves. O trabalho que
conduziu à feitura desta obra foi levado a cabo pelos autores que calcorrearam
lugares, investigaram e identificaram pedras e fragas, acompanhados por pessoas
conhecedoras das localidades.
Herculano Pombo, o
autor dos ensaios escritos, soube olhar as pedras, escutar as suas vozes, os
seus gemidos e os seus segredos. Deu-lhe uma roupagem muito própria recheada de
um léxico riquíssimo, apresentando-nos textos densos que nos informam e enriquecem
com regionalismos e neologismos (louvo a ousadia!) que engrandecem a sua
escrita. Altino Rio apresenta-nos um conjunto vasto de fotografias alusivas à
temática que são testemunho do trabalho realizado.
A obra em causa
permite-nos conhecer melhor o concelho de Chaves graças aos vinte ensaios que
narram a História de freguesias, de locais, lendas, mitos, figuras e
representações. Esclarecem-nos ainda o étimo das palavras provenientes do
latim, do grego e do galego. Escreveu Aquilino
Ribeiro: “A linguagem é a vestidura do
pensamento … Mas trata-se de uma vestidura de espécie singular que tem por
objetivo não apenas envolver, mas moldar, tal uma musselina, esse fantasma cuja
incorporeidade, sem ela, seria impercetível” (Carta-Prefácio, de Aquilino Ribeiro, Do “Dicionário de calão” por Albino Lapa, Lisboa, 1959). Herculano
Pombo escolheu as melhores palavras para envolver e dar vida a pedras, fragas,
locais, figuras e comunidades. A obra termina com um
glossário para melhor compreensão dos regionalismos e neologismos usados nas
crónicas e nas legendas, fotografias com os colaboradores, biografias e
publicações dos autores.
Quem viveu em meio
rural nunca deixou de usar pedras, fragas e fragaredos em diversos contextos: para
abrigo de uma inesperada trovoada ou do vento frio e enregelado; em momentos de
leitura ao sol primaveril; nas malhadas realizadas em enormes eiras na debulha
do milho, do feijão, do grão-de-bico, do trigo ou do centeio; nas diversas
brincadeiras com bugalhos ou pequenos paus e pedrinhas, a imitarem animais, em
cima de uma fraga; quem nunca se sentiu um cowboy
a subir, a trote, fragas e fraguedos?
As pedras, as fragas e os fragaredos fazem
parte da História de muitos lugares, contribuindo para uma identidade muito
própria das comunidades, e de muitas das nossas histórias ao longo da nossa
vida.
Como refere o Sr.
Vice-Presidente do município de Chaves, na mensagem inserta no livro, foram
apresentadas 20 crónicas de um total de 132 localidades, podendo deduzir-se que
há um património cultural ainda por desbravar.
Parabéns aos autores
por esta excelente obra!
Fernando Félix de Almeida Castro
(Os autores seguiram a ortografia anterior ao do
Acordo Ortográfico de 1990. Tentei ser coerente com esse princípio).